Quando o discurso cínico procura se impor ao discurso ético

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(Wladimir T. B. Soares)

Hoje vivemos um momento de grave ofensa ao núcleo denso ideológico da nossa Constituição Federal de 1988 – aquela Constituição Cidadã, que propõe o Brasil como um Estado Democrático de direito e de Bem-estar Social.

Infelizmente, muito em razão da surpreendente apatia e passividade de todos nós brasileiros, e também em razão de uma articulação de maldades articuladas por todos os Poderes da República, o pensamento neoliberal vem ganhando terreno.
E quando isso acontece, direitos sociais são perdidos, direitos humanos são menosprezados, o individualismo ganha força e a solidariedade passa a ser condenada.
Diversas reformas são realizadas, todas elas em favor do capital. O ser humano é ignorado, e a dignidade da pessoa humana é princípio negligenciado por aqueles que ditam as regras pra nós.

Nesse contexto, uma mídia é trabalhada no sentido de enganar a todos, com discursos de meias verdades, cuja finalidade é sempre a de criar um panorama de medo e insegurança social. Assim como nos regimes totalitários, uma determinada classe social é apontada como a culpada de todos os nossos males. Neste caso, os servidores públicos estatutários do Poder Executivo são o alvo de desqualificação, desprestígio e desrespeito, configurando, na verdade, em um cruel e covarde assédio moral por parte do Governo contra aqueles que são os responsáveis diretos pela concretização dos direitos de todos nós.

Assim, a Reforma da Previdência é anunciada pelo Governo como “necessária para acabar com os privilégios daqueles que trabalham pouco, ganham muito e se aposentam cedo” – na verdade, um slogan que certamente nasceu do momento em que o Presidente Temer se olhou no espelho, já que a frase se encaixa perfeitamente no seu caso.
Os valores recebidos como proventos de aposentadoria pelos servidores públicos estatutários do Poder Executivo são os mais baixos da Administração Pública, quando comparados com os servidores públicos dos Poderes Legislativo e Judiciário, Ministério Público e servidores militares das Forças Armadas.
Aí, sim, estão todos os privilégios. Não no Poder Executivo.

Os servidores públicos estatutários do Poder Executivo descontam mensalmente do seu salário bruto o valor de 11% como contribuição previdenciária, e continuam a contribuir mesmo depois de aposentados. Não têm direito ao FGTS quando exonerados e nem ao seguro desemprego. Estes são direitos dos empregados celetistas do setor privado, que, ao contrário dos servidores públicos estatutários, descontam para a contribuição previdenciária somente até o teto do INSS, e não sobre o valor do seu salário bruto.
Ou seja, tanto os servidores públicos estatutários quanto os empregados celetistas do setor privado recebem como proventos de aposentadoria o equivalente àquilo que durante toda a sua vida laboral contribuíram para esse benefício previdenciário: no caso dos servidores públicos estatutários – por descontarem sobre todo o valor bruto do seu salário – estes têm direito à integralidade e paridade dos seus proventos, porque foi pra isso, com esse sacrifício, que eles contribuíram; do mesmo modo, no caso dos empregados celetistas do setor privado, por terem contribuído a vida toda para o INSS somente sobre o valor do teto do INSS, independentemente do valor bruto recebido como salário, os proventos por eles recebidos devem obedecer a esse teto, e não ao valor integral dos seu salário, pois pra isso ele jamais contribuiu.
Além disso, os empregados celetistas do setor privado, ao se aposentarem, diferentemente dos servidores públicos estatutários, deixam de contribuir para o INSS.
Mas o cinismo ainda é mais flagrante quando o Presidente da República afirma que “os estudos têm demonstrado que, logo em breve, o brasileiro estará vivendo até os 140 anos de idade”.

O discurso cínico avança ainda mais quando o Ministro da Educação diz que “é preciso acabar com os privilégios dos professores, com suas férias de 45 dias ao ano e lanche grátis”.
Sobre essa afirmação, fica claro que o Ministro do MEC desconhece que os professores têm uma carga de trabalho em casa não reconhecida pela Administração Pública. Além disso, professores não recebem lanche grátis. Ao contrário, eles se cotizam na aquisição de cafeteira, pó de café, açúcar, adoçante e biscoitos – razão do lanche que consomem. A Administração Pública não fornece isso, ao contrário com relação aos Ministros de Estado, Congressistas, Magistrados, Procuradores e Membros do Ministério Público, cujos lanches são bancados por todos nós, de forma impositiva, sem o nosso consentimento.
Mais do que isso, Magistrados e Promotores Públicos têm férias de 60 dias ao ano.
Quanto aos Congressistas, além do recesso de fim de ano, têm o período de férias mais longo da Administração Pública, e sendo obrigados a trabalhar efetivamente somente três dias na semana: terças, quartas e quintas. E, do nada, ainda se dão o direito de declarar um recesso de 10 dias em pleno período legislativo normal. Ou seja, a imoralidade como regra para uma casta de privilegiados que não olha para o seu próprio umbigo.
Este mesmo Ministro é aquele que pretende transformar as nossas Universidades Públicas Federais – hoje Autarquias Federais, sob regime jurídico administrativo constitucional de direito público – em Organizações Sociais, sob o regime jurídico administrativo constitucional de direito privado. Ou seja, pretende fazer com que as Universidades Públicas Federais deixem de ser Instituições Sociais e passem a fazer parte de um “mercado universitário”, propiciando um ambiente de crescimento das desigualdades sociais, exatamente por suprimir a igualdade de oportunidades ao Ensino Público Superior.

Ao mesmo tempo, a Reforma Trabalhista institui o chamado “trabalho intermitente” que nada mais é do que uma condição de trabalho equivalente a escravo, precarizando as relações trabalhistas, ferindo os Princípios Constitucionais do Pleno Emprego e do Valor Social do Trabalho, além do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.
Essa é uma Reforma recheada de prejuízos para o trabalhador e benefícios para o empregador, passando a considerar o empresário como a parte vulnerável na relação jurídica trabalhista, invertendo a lógica jurídica do Direito do Trabalho.
Mais do que isso, essa Reforma traz uma flagrante discriminação social – defendida pelo Presidente do TST (Tribunal Superior do Trabalho) – ao prever que o cálculo do valor do dano moral sofrido pelo trabalhador a ser indenizado pelo empregador deve levar em conta a condição socioeconômica do trabalhador lesado, de modo que, por exemplo, a perda de uma perna ou um braço por um trabalhador rico deve ser indenizada com valor superior ao da perda de uma perna ou um braço de um trabalhador pobre, contrariando o preceito constitucional da não discriminação.

As perversas propostas deste Governo para os servidores públicos estatutários do Poder Executivo não param por aí: congelamento de salários, suspensão do pagamento do adicional de qualificação (especialização, mestrado e doutorado), programa de demissão voluntária, perda da estabilidade, controle de ponto biométrico.

Quanto ao congelamento de salários – uma atitude típica dos governos neoliberais (basta lembrarmos que no Governo de Fernando Henrique Cardoso, salvo pouquíssimas exceções, os servidores públicos federais do Poder Executivo ficaram com os seus salários congelados durante praticamente todo o seu mandato presidencial), este congelamento é flagrantemente inconstitucional. Todavia, a Constituição Federal não é a referência legal deste Governo.
A suspensão do adicional de qualificação fere o Princípio Constitucional da Eficiência Pública e o Princípio da Dignidade Profissional.
Isto por ser do interesse público e da Administração Pública que os seus servidores se qualifiquem continuamente, aprimorando mais os seus conhecimentos, de modo a contribuir ainda mais para a construção do desenvolvimento socioeconômico da nossa Nação.
Assim, não é – e não pode ser – do interesse da Administração Pública que o servidor se mantenha estagnado do ponto de vista educacional e profissional. Ao contrário, a busca do conhecimento e aperfeiçoamento profissional é objetivo de toda Administração Pública que queira se afirmar como eficiente, eficaz e produtiva.
Pra isso acontecer, há de se prestigiar aquele servidor público que se esforça permanentemente em crescer intelectualmente, sendo capaz de elaborar um pensamento crítico sobre os diversos temas que permeiam a atividade administrativa, o que só engrandece o setor público brasileiro.

O controle de ponto biométrico, do ponto de vista de resultados, nada acrescenta à eficiência pública. Isto porque o controle de frequência do servidor públuco através da biometria só traz ganhos para os donos da empresa que venceu a licitação para a venda das máquinas registradoras do ponto, haja vista configurar enorme transferência de recursos públicos para o setor privado, de forma permanente, em razão não somente do contrato de compra e venda, mas também pelo contrato de manutenção.
A Lei n. 8.112/90 já traz mecanismos de anotar as faltas do servidor, sem qualquer custo extra para os cofres públicos.
Além disso, não sendo o controle biométrico aplicado a todos os servidores públicos de todos os Poderes da República, isto, por si só, já constitui uma discriminação, ferindo os Princípios Constitucionais da Equidade e Moralidade Pública.
O ponto biométrico, por si só, não é instrumento suficiente para garantir qualidade e nem instrumento capaz de obrigar qualquer servidor a trabalhar.
As chefias imediatas já têm essa responsabilidade: acompanhar o trabalho dos seus subordinados hierárquicos, bem como anotar as suas eventuais faltas.
Aquisição de centenas ou milhares de máquinas registradoras de frequência (entrada e saída) dos servidores públicos é mais uma política para atendimento de interesses privados daqueles que fabricam, vendem e fazem a manutenção dessas máquinas. Fico imaginando quanto o Governo Federal vem gastando com tudo isso, enquanto os hospitais e escolas públicas definham em precariedades.

Quanto ao Regime Jurídico Único, a estabilidade e a efetividade dos servidores públicos estatutários, estes constituem uma conquista do povo brasileiro na Constituição Federal de 1988, pois são condições essenciais e necessárias para a garantia da continuidade dos serviços públicos, bem como a garantia de voz aos servidores públicos em defesa da sociedade e um dos elementos de blindagem contra a corrupção e o aparelhamento político da Administração Pública.
Os servidores públicos estatutários conquistam seus cargos públicos a partir da aprovação em concurso público, o que revela o critério da meritocracia, em que o Princípio Constitucional da Impessoalidade é assegurado de forma transparente, sem influências de apadrinhamento político ou de qualquer outro recurso espúrio.
A estabilidade do servidor público estatutário não é fator impeditivo da exoneração do servidor público, mas sim uma garantia de que ele só pode ser exonerado por justa causa, razão de sempre isso ser conduzido por meio de um processo administrativo disciplinar, em que se assegura a defesa plena e o contraditório, além de todos os outros instrumentos do devido processo legal, em obediência ao Estado de Direito e em atendimento ao Princípio Constitucional da Legalidade.
Essa estabilidade do servidor público estatutário é um importante instrumento de controle social dos atos injustos cometidos pela Administração Pública, já que assegura ao servidor público estatutário ser o primeiro advogado daquele do povo que tem um direito subjetivo seu lesado ou ameaçado pelo Poder Público.

Nesta seara da estabilidade, o que precisa ser extinto é a vitaliciedade própria da magistratura, já que isto, sim, fere o Princípio Democrático, não havendo argumento sério que seja capaz de sustentar tal privilégio transformado em prerrogativa.
Cargo vitalício no serviço público ofende a sociedade, ofende a razoabilidade e ofende a razão pública.

Do mesmo modo, o chamado “quinto constitucional” também precisa ser extinto, pois não é possível que alguém, por mera indicação política, de cunho absolutamente pessoal, venha ocupar o cargo público de Desembargador, sem jamais ter exercido o cargo de Juiz e sem nunca ter sido aprovado em um concurso público para este fim. Isto fere os Princípios Constitucionais do Concurso Público, Impessoalidade e Moralidade, não se adequando ao Estado Democrático de Direito, configurando um instrumento de aparelhamento político do Poder Judiciário, o que não encontra abrigo no Princípio Constitucional da Tripartição dos Poderes.

Outra decisão urgente a ser tomada é a extinção de todos os cargos comissionados na Administração Pública Brasileira, em todos os Poderes da República e em todas as esferas de Poder, pois a existência desses cargos fere os Principios Constitucionais do Concurso Público, Eficiência, Moralidade, Igualdade, Impessoalidade e Economicidade.
Nada justifica a permanência desses cargos comissionados, já que eles, na verdade, constituem um deplorável aparelhamento político de todo o Estado Brasileiro, que nada contribui para a Ética e a Moral Administrativa, negando o critério da meritocracia.

Do mesmo modo, carros oficiais e cartões corporativos são imoralidades que não cabem na Democracia do século XXI, além de serem privilégios que ferem os Princípios da Economicidade e Moralidade Pública.

O discurso cínico é mais agressivo quando o Ministro da Saúde afirma “não ser Ministro do SUS (Sistema Único de Saúde) e que “integralidade e universalidade são princípios contraditórios, e que bom mesmo é criar um plano privado de Saúde para o pobre”.
Isto nos remete a admitir que, num país chamado Brasil, aonde 75% dos brasileiros dependem, única e exclusivamente, do SUS para a assistência em saúde, o titular da pasta da Saúde têm como política pública para o setor beneficiar o mercado dos planos de saúde e colaborar ainda mais para o desmonte de todo o sistema público de saúde brasileiro, não se importando com o ser humano em si, mas tão somente com o capital e o mercado.
Mais do que isso, o Ministro revela o seu total desconhecimento do sistema, razão de toda a sua incompetência para o ofício.

Em parceria com os Ministros da Educação e do Planejamento, o Ministro da Saúde defende a existência da EBSERH – Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares: uma empresa estatal com personalidade jurídica de direito privado, com finalidade lucrativa, criada para mudar o perfil dos nossos Hospitais Universitários Públicos Federais, transformando-os em filiais empresariais da EBSERH, sem qualquer vocação para o ensino, composta por milhares de cargos comissionados, que transfere uma infinidade de dinheiro público para o setor privado – particularmente, para o Hospital Sírio Libanês – por meio de diversos contratos que em nada interessam à sociedade, institucionalizado nesses hospitais regras de obstáculos ao livre acesso da população, ferindo a Autonomia Universitária, já que tudo o que acontece hoje nesses hospitais são por determinação exclusiva da EBSERH, não estando mais esses hospitais integrados às nossas Universidades, passando a funcionar com precariedade para a assistência, e também para o ensino da medicina, concretizando-se como forte elemento de risco social para todos nós, em razão de contribuir para a má formação acadêmica de todos os profissionais das áreas da Saúde, além de ser fator determinante da destruição da carreira pública estatuária dos servidores da Saúde das Universidades Públicas Federais brasileiras.

A EBSERH faz do Brasil o único país do mundo a não contar com Hospitais-Escola, o que, por si só, já justifica a sua extinção.

A EBSERH é uma empresa em que 78% do seu custo é com gasto de pessoal (salários, gratificações, adicionais, viagens, hotéis, diárias etc), com um passivo bilionário e que teve a sua gestão avaliada pelo Ministério do Planejamento, recebendo a nota 1,94 numa variação de 0 a 10, o que revela a sua reprovação como empresa prestadora de serviços hospitalares e gestora de suas filiais.

Isto já é razão mais do que suficiente para a sua extinção, pois fere os Princípios Constitucionais da Economicidade, da Moralidade, da Eficiência, da Impessoalidade, da Razoabilidade e da Autonomia Universitária.

Mais do que isso, a EBSERH é uma empresa que foi criada a partir de uma lei – Lei n. 12.550/11 – inconstitucional.

Uma Reforma Política e Administrativa urgente deveria incluir a proibição de parlamentares ocuparem quaisquer cargos públicos que não sejam aqueles para os quais foram eleitos, em respeito ao Princípio Republicano da Tripartição dos Poderes, o que impediria o aparelhamento político do Poder Executivo pelo Poder Legislativo, melhorando a qualidade da nossa Democracia.

Cargos de chefias na Administração Pública só devem ser exercidos por servidores públicos concursados, em funções gratificadas, o que será capaz de gerar enorme economia para os cofres públicos, aumentando a possibilidade de eficiência e controle.

Há de ser criado um mecanismo de controle social do Poder Judiciário, particularmente dos Tribunais Superiores, por não ser plausível nem razoável, em um Estado Democrático de Direito, que qualquer dos Três Poderes da República fique imune ao controle daquele que, efetivamente, é o titular e detentor do Poder de nossa Nação: o Povo Brasileiro.

Roubaram e continuam roubando os nossos cofres públicos, os nossos direitos humanos fundamentais de natureza social e a nossa dignidade.
Mas não vai conseguir corroer o nosso caráter, razão pela qual resiste a esperança e a vontade de lutar, porque merecemos um País melhor para todos. E já sabemos que com os atuais agentes políticos nada disso será possível, porque formam uma rede de proteção entre si mesmos, garantindo – ou procurando garantir – sua próprias impunidades, construindo armadilhas contra o Povo Brasileiro, em atitudes quase obsessivas de transformar a nossa sociedade em uma sociedade de mercado, aonde tudo tem um preço, inclusive os valores cívicos e morais.

Mas não vão vingar por muito tempo.
A reação popular, em algum momento, há de surgir e banir para sempre essa gente creatina e covarde das nossas vidas….

Wladimir Tadeu Baptista Soares
Advogado
Médico do SUS
Professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal Fluminense – UFC
[email protected]
Niterói – RJ
27/11/2017

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